Conto, com a Reitora
Inezita, minha viola!
Ela nasceu em um dia de carnaval do ano de 1925 e morreu no Dia Internacional da Mulher, 8 de março, quatro dias após completar noventa anos. São para Inezita Barroso minhas palavras neste encontro com vocês, uma homenagem oportuna nesse difícil momento de desvalorização de nossa cultura, de perda de nossos valores. Na verdade, é mais do que uma palavra, é uma pequena reportagem, pois precisei de alguma pesquisa e da ajuda de quem conheceu ainda mais de perto a brasileiríssima Inezita.
Formada em Biblioteconomia pela USP, Inezita deixou seu legado de conhecimento também em nossa instituição. O UNIFAI teve o privilégio de contar com ela em seu corpo docente de 2004 a 2009. Foram seis anos ministrando aulas no curso de Turismo. Sempre foi uma inconformada com o descaso quando o assunto é a preservação de nossa cultura. “As crianças deveriam, primeiro, aprender sobre o Brasil e sua cultura; somente depois tomar ciência da cultura e costumes dos povos de outros países.”
Inezita foi um dos ícones da música brasileira “de raiz”. Mais que isso, admirável em tudo o que se propôs a fazer. Na docência, na música, na vida, foi a simplicidade e a autenticidade em pessoa! Nasceu Ignez Magdalena Aranha de Lima, “simplesmente Inezita”, resume o jornalista e estudioso da Cultura Popular, Assis Ângelo, que, por admirá-la tanto, dedicou à infância dela o primeiro livro infanto-juvenil que escreveu: “A menina Inezita Barroso” (Cortez Editora, 2011, São Paulo).
Cantora, apresentadora, instrumentista, arranjadora, folclorista e pesquisadora da música popular nordestina, por mais de três décadas, comandou o programa “Viola, minha Viola”, da TV Cultura. Em cerca de 60 anos de carreira, gravou mais de 80 discos. A meu pedido, a jornalista e colaboradora do UNIFAI, Joana Gonçalves, foi buscar com o amigo e jornalista Walter de Sousa um pouco mais da beleza de Inezita que ele teve o prazer de admirar de perto.
“Trata-se de uma personalidade emblemática. Nos seus olhos está a resistência da música caipira: reverenciada por velhos e novos violeiros. Esses últimos ela tem orgulho de considerar seus afilhados”, conta Walter na parte dedicada à Inezita no livro “Moda Inviolada - Uma história da música caipira”.
“Ao falar da música caipira, Inezita não assume um tom de propriedade, o ar professoral, como se poderia supor. Não tem a soberba do pesquisador. Não se apropria da música da qual há muito perdeu a vergonha de declarar sua paixão, despertando muitos outros apaixonados. É delicada ao falar da música caipira, emprestando uma versão pessoal à História.”
“A música caipira, legítima, raiz, é ligadíssima ao folclore paulista. É o tipo de música mais antiga que existe, porque vem dos jesuítas e dos índios.” Inezita não faz distinção entre música folclórica e música caipira. “A moda-de-viola, que é a principal para o caipira, já nasceu junto com tudo isso, com rabeca, com viola”. Tanto que no programa Viola Minha viola, se faz questão de pôr a moda-de-viola mesmo, violeiro mesmo, que toca viola caipira mesmo, sem invenções de doze cordas: violinha de dez. “E, por incrível que pareça, o que o público ama é isso”, enfatiza.
Música sertaneja, então, para ela, não tem relação alguma com a música caipira. O termo caipira, ela acredita ser consequência do “cochilo” de Monteiro Lobato. “Era assim uma moça mal vestida... ‘Olha que roupa Jeca, que caipira!’ O cara desdentado. ‘Coitado, é caipira.’ Pé no chão. Então ficou uma coisa depreciativa.” E é definitiva na comparação: “Aí chama de sertanejo porque não quer falar caipira... Não venha me chamar de sertanejo um negócio que não tem nada a ver. Pelos seus cálculos, 90% desses cantores nunca viram um boi vivo, uma galinha, nunca pisou na terra nem nada. Não tem nada nem de sertão, nem de roça, nem de fazenda...”
“Debochar disso é querer matar isso... vai acabar o País. Uma pessoa que entendesse isso, amasse, tivesse dinheiro para bancar isso. Já falei que o dinheiro mata tudo o que ele quiser. Mata um País. Faz perder as raízes. Faz perder a cultura, a tradição, tudo isso. Isso eu morro de pena. Acho que o povo merecia estar mais inteirado das coisas, perto das raízes.” E aproveita o encontro com Walter para desabafar: “Aqui é o único país do mundo em que você briga para cantar a música da terra. E faz mais sucesso lá fora”.
Inezita lamenta a falta de divulgação da cultura entre os jovens, a ausência de preservação das manifestações folclóricas e sua divulgação para o público urbano. “Nós não somos americanos, não somos cowboy. Então o que que você guardou dentro de você? A sua tradição, a sua raça.” Um conselho de Inezita: “olhem mais para dentro e deixem o lá fora”, conclui, com voz amiudada, o olhar enevoado, a menina da voz contralto”.
Nosso muito obrigado a Inezita.
Fontes:
Livro de Walter de Sousa: “Moda Inviolada - Uma história da música caipira” (Editora Quiron, 2006) e Boletim Jornalistas&Cia - Especial Memória da Cultura Popular (Ano I – nº12 – 10/4/2013)
São Paulo, 08/03/2014
Profª. Drª. Karen Ambra
Reitora do Centro Universitário Assunção