Conto, com a Reitora
Com diagnóstico, mas sem tratamento!
Passada a perplexidade diante da sombria semana que marcou este mês de março, com os massacres, primeiro, na escola de Suzano, na Grande São Paulo, e, dois dias depois, em duas mesquitas na cidade de Christchurch, na Nova Zelândia, quero propor a vocês, neste espaço, um exame de consciência sobre os elementos que nos têm conduzido a tamanhas tragédias.
A esses dois eventos quero somar um terceiro, deles aparentemente desassociado: menos de uma semana antes, uma inundação histórica abalou a cidade de São Paulo. Foi apenas mais um alerta da natureza sobre a maneira como estamos lidando com os recursos naturais e sua gratuidade. Tenho certeza de que a pergunta primeira de um leitor mais atento aqui será: o que essa catástrofe climática tem a ver com as duas tragédias articuladas pela mente doentia de atiradores assassinos?
Muito simples. Os três eventos são sinais explícitos de que há algo muito errado com nossa sociedade dita “moderna”. Isso é evidente. Estamos diante de uma sociedade adoentada, gravemente enferma, com urgência de intervenção. Temos que diagnosticá-la tal como uma equipe de especialistas em Medicina faria na análise de um indivíduo com enfermidades aparentemente distintas, mas que carregam em comum as mesmas causas, a mesma origem.
No caso do clima, a análise é mais que urgente, afinal há muito não se viam inundações dessa natureza e tão frequentes! Catástrofes assim deixaram de ser pontuais, isoladas, prova é que há poucos dias assistimos à passagem do ciclone Idai pelo sul da África, destruindo tudo o que encontrou pela frente – casas, hospitais, estradas, etc. – e deixando um rastro de milhares de mortos e desaparecidos. Moçambique, Zimbábue e Malauí foram os países mais atingidos. Os governos locais estimam em cerca de mil mortos e mais de 600 mil pessoas atingidas pelas enchentes.
Mesmo diante da frequência dessas catástrofes, pouco ou nada se tem feito em melhoria no cuidado de nossa casa mãe, em ações preventivas. Podemos falar por São Paulo. Ao espanto e à correria dos dois dias que se seguiram à inundação da cidade pouco ou nada de relevante se somou em termos de medidas preventivas concretas. Ações paliativas pós-eventos semelhantes em nada adiantam. Não há investimentos em infraestrutura especialmente em regiões mais pobres, não à toa, as mais afetadas. As pessoas, quando não perdem a vida, perdem bens, perdem tudo, e têm de recomeçar do nada a cada cinco/seis anos. Este é um ponto: como a cidade trata seus habitantes, especialmente os mais necessitados.
Como disse acima, as tragédias que puseram fim, em Suzano, à vida de oito pessoas, e na Nova Zelândia, de quarenta e nove, têm algo em comum, como veremos mais abaixo. No caso do Brasil, o primeiro sinal evidente é o descrédito das instituições, sejam civis, jurídicas ou religiosas. Como deixaram de confiar em instituições que originalmente têm o compromisso de protegê-las, ampará-las e ajudá-las na reparação de eventuais injustiças, as pessoas, ao se sentirem lesadas em seus direitos, buscam meios para “exercer” a justiça pelas próprias mãos. Isso tem sido recorrente em novelas, filmes, jogos eletrônicos, etc. No direito, temos a chamada ‘dosimetria da pena’, a determinação da pena exata para cada crime cometido por um condenado.
A questão é como dosar, dar o peso da pena em um delito? Quando se tira de uma instituição a prerrogativa de pensar numa justiça reparativa, corre-se o risco de cair no outro extremo, que é a questão da subjetividade, e a vítima pode ser levada a cometer injustiças ainda maiores e num grau exacerbado em relação ao que sofreu. Sem o critério da dosimetria, na falta de um parâmetro o máximo possível objetivo, se perde completamente a noção de como reparar uma injustiça sem cometer outra pior ainda.
O resultado, o assistimos em Suzano: por sofrer um bullying, o aluno se viu no direito de tirar a vida de tantas pessoas. É preciso entender o que houve com as instituições e pensar formas para reverter esse quadro de descrédito, resgatar a confiança, para que possam ser acessadas quando necessário. Se dizem não ser possível uma democracia sem polícia organizada, sem um sistema de justiça criminal eficiente, capaz de mediar os conflitos, capaz de punir a infração, o desvio ao código penal, por outro lado, não há redução de violência sem justiça social, sem educação e condições básicas de saúde (saneamento, canalizações de córregos e rios, conscientização da população quanto ao não descarte de sujeira nas ruas e à coleta seletiva do lixo). O Japão é uma prova concreta desse exercício de cidadania de como zelar pelo bem comum.
Outro ponto a se pensar: em minha época de menino, xingar e/ou receber xingos de colegas na escola fazia parte da rotina; não se fazia estardalhaço por isso e éramos punidos na justa medida quando extrapolávamos. Quero dizer, o sofrimento faz parte do crescimento do indivíduo, mas, vejam, não estou querendo afirmar aqui ser favorável a que as crianças saiam por aí a botar apelidos em seus desafetos ou a ridicularizá-los. O que quero dizer é que nossa sociedade exacerbou fatos e fatores que acabaram por criar uma situação sobre a qual agora temos pouco ou nenhum controle, e perdemos o parâmetro do que é minimamente aceitável e natural numa desavença de crianças.
Esse problema veio com a desvalorização social dos professores e das instâncias educacionais em nossos dias. Na minha meninice, os professores contavam com o apoio dos pais para exercer o seu ofício em sala de aula, num equilíbrio entre ordem, respeito e participação coletiva; e não poucas vezes tomavam a frente em casos de ofensas mais graves entre os alunos. Hoje, se o fazem, são alvos fáceis de pais que tomam aprioristicamente a defesa de seus filhos, deixando os docentes desautorizados e desmoralizados.
Além do mais, pelo que vejo e ouço dos professores da rede pública e também privada, seus pares têm saído cada vez menos preparados das Instituições de Ensino Superior (IES) para intervir em conflitos próprios de crianças e adolescentes. Sem uma dupla ou tripla cooperação (pois outras formas de organização comunitária poderiam também dar sua contribuição), não chegaremos a lugar algum. É preciso devolver à família a responsabilidade pela educação dos filhos e ao professor o papel de mediador na busca do conhecimento e da verdade. Não raro os professores têm de assumir prioritariamente a primeira tarefa. Educação tem início no berço e não somente nas instituições escolares e religiosas.
Nesse horizonte, emerge também a dificuldade de lidar com o diferente, com alguém que tem uma posição ou uma opinião diferente da nossa, dificuldade emblemática no caso do massacre de Suzano e também na chacina da Nova Zelândia. Em nossa atualidade as pessoas transitam numa velocidade muito grande. As mídias mostram como é viver em outras partes do mundo, e é um atrativo para uma pessoa que está vivendo muito mal; estamos gerando essa expectativa, gerando no outro a possibilidade de buscar uma solução de vida melhor.
Correntes migratórias sempre fizeram parte da história, no Brasil, inclusive, na virada do século XIX – e agora vemos isso em âmbito mundial e em grau muito elevado. E esse imigrante em busca de uma expectativa de vida melhor passou a ser visto por nós como uma ameaça. No caso do que é considerado o pior ataque a tiros da história da Nova Zelândia, um dos atiradores explicitou seu extremismo transmitindo ao vivo imagens do ataque no Facebook, depois de publicar um “manifesto” no qual denunciava os imigrantes, chamando-os de “invasores”.
Todos esses acontecimentos que acabei de citar são fortes indicativos de que nossa sociedade está doente. É preciso que nos debrucemos e reflitamos sobre essa enfermidade. Pelo que vejo, ainda não se trata de uma doença crônica, e este é o lado bom da notícia! O diagnóstico preliminar indica que ainda há tempo de fazer alguma coisa; significa que esse corpo doente pode vir a convalescer. Vejam bem, se não fizermos nada para reverter essa situação, só nos restará a resignação diante de um fim anunciado. Mas, se viermos a reagir, não significa também que nos tornaremos saudáveis de um dia para o outro! Pelo que vejo, a triste história de nossa enfermidade exigirá um longo período de convalescência em que as dietas e os cuidados deverão ser constantes para evitar uma recaída. E olha que diante da inelutável perspectiva do fim, isso já é uma grande coisa!
Reitor Prof. Dr. Pe Edelcio Ottaviani
São Paulo, 25/03/2019
Profª. Drª. Karen Ambra
Reitora do Centro Universitário Assunção