Conto, com a Reitora
“E a palavra se fez carne e acampou entre nós” (Jo 1, 14)
Gostaria de desejar a todos um Natal de muita luz! Que esse período de festas seja também de reflexão sobre o que representou 2019 em suas vidas, em seus corações, e como podem tornar 2020 um tempo ainda melhor para si mesmos, para a sociedade e para o planeta.
Escolhi, para abrir meu primeiro colóquio do ano, a palavra veracidade, que nada mais é do que “qualidade ou atributo do dizer verdadeiro”, em grego parresía. Não por acaso, eu a associo ao núcleo da mensagem natalina que selecionei para encerrar o ano acadêmico e civil com todos vocês do UNIFAI:
“Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes. (...) Ele não julgará segundo a aparência. Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer. Antes, julgará os fracos com justiça, e com equidade pronunciará sentença em favor dos pobres da terra” (Is 11, 1. 3b-5).
Por que a escolha do termo relacionada à citação de Isaías? Simples. Em 2020 iremos às urnas, desta feita para escolhermos os representantes municipais, aqueles gestores públicos cujas decisões mais influenciam nosso cotidiano e que, até pela maior proximidade, deveríamos acompanhar mais de perto, cobrando, fiscalizando, vigiando, sugerindo, para que suas prioridades não excluam os pobres.
Infelizmente, sabemos que a palavra veracidade se contrapõe à postura que muitos deles adotam para alçarem ao poder, fazendo uso de mentiras, de Fake News. O que nem sempre nos damos conta é que, em muitas ocasiões, eles se valem de nosso descuido e de nossa ânsia em comentar e replicar tudo o que nos dizem, em seus discursos e em suas postagens, para alcançar seus objetivos. Na defesa do direito em favor dos pobres da terra, como nos diz Isaías, nunca o cuidado, a busca pela informação veraz e a consciência do poder das mídias sociais se fizeram tão necessários.
De acordo com a tradição cristã, sabemos que as palavras de Isaías encontraram sua materialização na pessoa de Jesus, que é, por excelência, a encarnação da palavra veraz: “Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer”, diz o profeta (Is 3b). Da mesma forma, o Evangelho de João realiza uma verdadeira releitura (midrash) do nascimento de Jesus associada à experiência do Deus libertador, anunciado pelos profetas e testemunhado pela tradição veterotestamentária. Ao dizer que “o verbo se fez carne e acampou entre nós”, João faz referência ao Deus que “acampou” no deserto junto a seu povo, na passagem da terra da escravidão para a terra da libertação (Cf. Ex 15, 22 – 27). Reparem que João usa o termo “acampou” (skénosen) e não habitou - que tira toda a especificidade deste habitar. Ao dizer “e o verbo se fez carne e acampou entre nós” (kai ó Logos sarx égéneto kai eskénosen en hémin“), João faz referência ao pedido outrora feito a Moisés, de que fosse construído um tabernáculo em forma de tenda, para que Deus habitasse em meio a seu povo (Cf. Ex 25, 8-9). Na mesma passagem de João pode-se ler: “porque a Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1, 17). Um pouco mais adiante, vemos o próprio Jesus dizer: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8, 31) e também: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6).
Nesse sentido, o evangelho de João é o testamento de que a passagem de situações de dominação para um estado de emancipação e libertação só é possível mediante a palavra veraz, da qual Jesus é o grande modelo. É o que vai atestar também a Festa da Epifania, pois a ida dos Reis Magos até a gruta de Belém, que a Igreja celebra em 6 de janeiro, é também uma releitura (midrash) da ida da Rainha de Sabá até o rei Salomão (1 Rs 10, 1-13). O evangelista Mateus (2, 1-12) mostra que, a exemplo da rainha de Sabá indo até Salomão para beber de sua sabedoria, os três reis vão até o Menino-Deus para dele sorver a sabedoria capaz de estabelecer a concórdia, a justiça e a paz entre os povos.
Ao contemplarmos aqueles que nos governam e o espírito que deveria nortear nossa escolha dos que irão se candidatar ao governo de nossas cidades, deveríamos constantemente nos indagar: “Qual a sabedoria que dirige suas ações? Qual o grau de veracidade que provêm de suas palavras? Qual seu compromisso com a defesa de direitos e proteção dos pobres? Qual seu grau de comprometimento com a palavra veraz, que recusa toda a sedução da palavra bajuladora que almeja o dinheiro e o poder? Como podemos, também nós, resistir a esses interesses escusos? Teremos o comprometimento de verificar o fundamento e o grau de viabilidade de suas propostas, e de identificar qualquer promessa ilusória, fictícia e sedutora que não encontra aplicação na realidade?”
Digo que é melhor se calar do que difundir inverdades; averiguar as várias versões sobre o fato do que difundi-las intempestivamente. Talvez fosse até mais prudente tomarmos o exemplo de Zacarias que, para não difundir uma palavra de dúvida, foi calado pelo anjo até que a promessa da vinda de João, o Batista, se concretizasse. Mas voltemos a Isaías, que contempla com esperança as novas gerações, ou melhor, a vinda desse broto de Jessé e que o evangelista Mateus afirma ser Jesus (Cf. Mt 1, 6-16). Ambos, Isaías e Mateus, referem-se com esperança à renovação do mundo pela figura do jovem Davi, que veio do tronco, da estirpe de Jessé. A exemplo da juventude de Davi e daquilo que emana do pequeno Jesus, também nós podemos nutrir esperança de renovação nas novas gerações. Aqui tomo a liberdade de citar a menina sueca Greta Thunberg, que se revelou um ícone da luta pela preservação do meio ambiente, no combate ao aquecimento global. À revelia da polêmica que se instaurou em torno de sua figura, vista por muitos como uma marionete de grandes grupos capitalistas globais, prefiro ressaltar sua capacidade obstinada, enquanto autista, de tomar a peito uma causa e motivar milhões de pessoas em várias partes do mundo a seu favor, sensibilizando-as a assumirem o papel de defensoras da vida e da preservação da nossa Casa Comum, como diz o Papa Francisco.
Que a esperança suscitada pelos gestos “de uma pirralha” como Greta lance as pequenas pedras capazes de fazer ruir os pés de barro dos “Golias” que, contra toda ciência e toda evidência, difundem mensagens enganosas tais como “a terra é plana” e que “os índios são atrasados” e, por isso, acreditam que eles podem ser perseguidos e brutalmente dizimados de nossa nação. Já é tempo de aprender a distinguir a verdade dos mitos indígenas, que preservam sabiamente nossa casa comum, da inverdade de um “Mito” criado para defender os interesses daqueles que se utilizam de todos os meios para enriquecer e que, contrariamente às palavras de Isaías, pronunciam sentenças contra os pobres da terra.
Caríssimos, caríssimas: Chegou o Natal! E com ele a esperança de uma palavra verdadeira pronunciada a cada dia do Ano que se inicia!
Reitor Prof. Dr. Pe Edelcio Ottaviani
São Paulo, 19/12/2019
Profª. Drª. Karen Ambra
Reitora do Centro Universitário Assunção