Conto, com a Reitora
Em dia com os apelos de Francisco
Em meados de setembro tive a gratificante experiência de participar de um Congresso de Teologia na Pontificia Universidad Javeriana, em Bogotá, Colômbia. Confesso, saí deste encontro ainda mais disposto a refletir sobre as muitas admoestações e orientações do Papa Francisco para a Igreja, os cristãos, o sacerdócio, as instituições, o nosso mundo. É o entusiasmo que me leva a querer partilhar um pouco dessa rica experiência com vocês neste espaço.
Sob o título “Interpelaciones Del Papa Francisco a La Teología Hoy”, este foi o primeiro congresso internacional voltado para o debate entre os círculos acadêmico e teológico sobre as interpelações de nosso pontífice para a teologia e para a Igreja. Ou seja, nas conferências e diversos painéis que ali tiveram lugar, nos foi permitido saber o que pensam os teólogos, analistas e líderes sociais, sacerdotes, jornalistas e cientistas da religião, especialmente da América Latina, Europa e América do Norte, reunidos em Bogotá, sobre os apelos dessa figura singular.
Norteando as discussões estavam os quatro documentos que marcam este pontificado: Evangelii Gaudium, Misericordiae Vultus, Laudato Sí e, o último, Amores Laetitia, sobre a família. Em comum as cartas papais nos advertem para a necessidade de uma Igreja em sintonia com as grandes causas da humanidade, uma igreja samaritana, misericordiosa, uma Igreja que saia das sacristias e vá para as ruas, que seja capaz de se compadecer dos mais pobres.
Francisco insiste: “Não se contentem com uma teologia de escritório. Que o lugar de suas reflexões sejam as fronteiras. Que a teologia seja expressão de uma igreja que é “hospital de campanha” que vive sua missão de salvação e cura no mundo. Que também os bons teólogos, como os bons pastores, sintam o cheiro do povo e da rua e com sua reflexão derramem unguento e vinho nas feridas dos homens.”
Em particular, um elemento de debate no Congresso me chamou a atenção: O pontífice não cita especificamente o Concílio Vaticano II, mas retoma e aplica as grandes intuições de João XXIII e dos padres conciliares, intuições estas que ficaram pelo caminho ou que tomaram outros vários rumos nesses últimos 50 anos.
Explico melhor. Francisco não quer ver somente comentados os documentos conciliares; antes, quer vê-los aplicados contemporaneamente, à luz do Evangelho, como ele próprio faz. Não fala simplesmente que a Igreja tem de se colocar em diálogo com o mundo, com a ordem política... Ele provoca esse diálogo e convoca ecumenicamente e inter-religiosamente todos a fazer o mesmo e a pensar em conjunto o melhor para a vida humana como um todo.
Mais que uma ideia, a palavra aggiornamento (colocar-se na ordem do dia), orientação-chave do Concílio, tem sido “incorporada” por Francisco como uma postura de vida. A cena que melhor retrata isso foi quando, recém-nomeado para o lugar de Pedro, ele se apresentou não como papa, mas como bispo de Roma, como primus inter pares (o primeiro entre seus iguais), e antes de abençoar o povo na Praça de São Pedro, pediu que orássemos para que Deus o abençoasse.
Francisco tem se declarado à imprensa, ele mesmo, em constante disposição ao “diálogo” sobre as várias questões que desafiam a Igreja, o mundo. Aborda sem receio temas como homossexualidade, racismo, ecumenismo, corrupção, papel das mulheres na Igreja, etc. Aliás, entre suas últimas providências, formou equipe para discutir o diaconato feminino, e, impaciente, criou uma comissão de sete cardeais para discutir a reestruturação da Cúria Romana em resposta aos escândalos de corrupção envolvendo o Banco Ambrosiano.
O conferencista italiano Antonio Spadaro foi preciso ao definir Francisco: “Ele não é um reformador da Igreja, mas da Cúria Romana. Como bom Jesuíta, quer Jesus no centro da Igreja. Todo o seu empenho é colocar o modo de ser do Homem de Nazaré, seus atos, suas palavras, seus gestos, como luz para iluminar nossos caminhos. A Cúria Romana tem de orbitar em Cristo. Não é ela o centro. É Cristo.”
Vejo na análise de Spadaro, a quem o Papa concedeu uma bela entrevista tão logo assumiu o pontificado, a síntese do pensamento de Francisco. Embora ter Cristo no centro da Igreja nos pareça óbvio, ao longo da história nem sempre foi assim. A tentação de instrumentalizá-lo é uma constante, levando a prevalecer os interesses da instituição à frente das exigências do Evangelho.
Temos, agora, a possibilidade de realocá-lo e criarmos, assim, uma nova forma de relacionamento institucional e comunitário, como o próprio Jesus pediu aos discípulos, e, em decorrência, à tradição apostólica, segundo o documento de Aparecida. Isso será possível na medida em que nos dispusermos ao diálogo e ao serviço aos mais necessitados. Ao instituir o Ano da Misericórdia, o Papa nos chamou ao exercício de uma igreja misericordiosa, não a que repreende e pune, mas a que acolhe, que escuta, que cura as feridas.
Em Amores Laetitia, sua última encíclica, também exaustivamente debatida no encontro de Bogotá, o Papa coloca a família como a célula a partir da qual se restitui a tessitura social. Os laços familiares encontram-se esgarçados, mas, apesar de todas as dores e contradições, a família continua como espaço para a experiência do amor, da descoberta, do convívio com as diferenças, antes de se expandir para o social.
Impossível externar toda a riqueza do conteúdo de Bogotá em tão poucas linhas. Faltou-me falar, por exemplo, do motivo que me levou até a Colômbia: Fui falar de poesia! Na exposição intitulada “Laudato Sì - Usus pauper e Poesia no cuidado com a casa comum”, abordei a linguagem poética como contraponto à linguagem científica e tecnicista.
Isso porque um dos elementos mais discutidos pelo papa é necessidade de contemplarmos a criação como presente, e não como fonte inesgotável de lucro para saciar nossa avidez de consumo, que tende a nos escravizar. Ele nos convida a termos a mesma percepção artística e poética do poverello Francisco de Assis, que se despossuiu dos bens para viver livre e senhor do mundo.
Voltaremos ao tema em tempo oportuno.
Reitor Prof. Dr. Pe Edelcio Ottaviani
São Paulo, 03/10/2016
Profª. Drª. Karen Ambra
Reitora do Centro Universitário Assunção