Conto, com a Reitora
Homenagem a um pastor contemporâneo
Abro um espaço neste mês de Advento para homenagear, com o Prof. Valter Luiz Lara da Pastoral Universitária, o Cardeal emérito de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns (1921-2016). No dia 14 deste mês, às 11h45, o franciscano, filho de imigrantes alemães e nascido na cidade de Forquilhinha (SC), deu seu último suspiro. Três meses após ter completado 95 anos, entregou seu espírito no dia em que a Igreja católica celebra a memória de um de seus maiores místicos, São João da Cruz (1542-1591).
Notável é a associação que podemos fazer de D. Paulo ao Cristo crucificado. Nasceu em 14 de setembro, data em que se celebra a exaltação da Santa Cruz. Durante toda a sua vida, ele se identificou e se solidarizou com aqueles que carregam nos ombros o peso de uma existência aviltada. Foi assim com os pobres das favelas penduradas nos morros de Petrópolis; com o povo sofrido das periferias desta megalópole; com os presos políticos, torturados ou mortos pela ditadura militar durante os anos de chumbo. Não entraremos em detalhes, pois outros já disseram mais e melhor do que nós poderíamos falar a esse respeito. O memorial deste seu engajamento pela defesa dos direitos humanos nós o encontramos no célebre livro “Brasil, nunca mais!”.
Por ora, detemo-nos em duas das tantas qualidades que ele possuía: contemporaneidade e escuta. Essas duas virtudes já bastariam para associá-lo ao rol dos homens raros, no dizer do filósofo italiano Giorgio Agamben (1942). D. Paulo sempre tinha palavras encorajadoras e ideias geniais para iluminar os momentos mais sombrios. Agamben diz que a contemporaneidade é isso: a capacidade de ver a luz onde todos não enxergam senão as sombras. Extemporâneo, o contemporâneo aponta saídas, e faz com que seus atos acompanhem suas ideias. Ele se compromete com o que pensa a ponto de arriscar a própria vida, pois para ele o viver é intensidade, e não soma de instantes.
Quanto à escuta, ninguém nesta cidade soube ouvir mais do que ele. Abriu seus ouvidos à romaria de pessoas que acorriam à Cúria central para dar queixa do desaparecimento de seus parentes. Atento aos clamores dessa gente, pediu que se criasse a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo para denunciar a violação dos direitos humanos. Seus ouvidos não faziam acepção de pessoas. Ouvia a todos, católicos e não católicos. Porém, era mais atento à fala dos pobres. Não o fazia, entretanto, por discriminação, mas porque sabia que quando estes gritavam o clamor de justiça se apresentava mais vivo e veraz.
Quando, em todo o mundo, a colegialidade conciliar se tornou um paradigma para as comunidades católicas, ele criou o chamado colégio episcopal. Durante quase três décadas, reuniu-se com seus bispos auxiliares e o conselho de presbíteros para ouvir as demandas da sociedade, representadas pelo conjunto das comunidades. Discernir os sinais dos tempos era para ele não um peso, mas uma necessidade. Para bem fazê-lo, procurou cercar-se dos melhores assessores. Não se sentia onipotente, nem onipresente. Sabia que seus bispos auxiliares chegavam aonde ele não podia estar. Partilhava o exercício do governo da Arquidiocese porque tinha consciência de que o poder não ocupa um lugar, mas se efetiva pelo modo como é exercido. D. Paulo se tornou uma das pessoas mais poderosas do período da ditadura, sem nunca almejar o lugar do poder.
Nas sombras deste Brasil do presente, imerso num mar de corrupção e cercado por pessoas ávidas pelo ter e desprovidas de ser, figuras como D. Paulo são para nós emblemáticas. Ele era íntegro, e integridade é do que mais necessitamos, pois ela exige transparência e coerência entre o que é dito e o que é realizado. Em meio à degradação política, a serviço da avidez do lucro e do luxo, pessoas como ele são cada vez mais raras. Carecemos de referenciais. Mas, como dizia Nietzsche, quando o presente é avaro em exemplos, é preciso voltar ao passado para encontrar nele pessoas singulares que nos inspirem a fazer a diferença no futuro. Pois, o que foi possível um dia pode se tornar possível de novo. Está em nossas mãos a decisão.
E para aqueles que titubeiam e se tornam presas fáceis do ceticismo, o lema de D. Paulo (ExSpe in Spem) provoca e incita a olhar para o futuro com esperança. Foi por acreditar na força do Reino que Jesus não renegou sua cruz. “De esperança em esperança”, o mestre de Nazaré dizia estar ao alcance de todos uma bela forma de vida, ao proclamar: “bem-aventurados sois quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e regozijai-vos, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois foi assim que perseguiram os profetas, que vieram antes de vós” (Mt 5, 11-12). Certamente, o coro dos bem-aventurados ganhou nesses dias mais uma voz: a mesma que, por quase três décadas, como arcebispo, ouvimos ressoar pelo Brasil a partir dos pilares de nossa Catedral.
Obrigado por tudo, D. Paulo. Obrigado pelo timbre que trazemos na memória e pelo exemplo que o senhor é para nós!
Pe. Edelcio Ottaviani e Prof. Valter Luiz Lara
São Paulo, 14/12/2016
Profª. Drª. Karen Ambra
Reitora do Centro Universitário Assunção