Conto, com a Reitora
Nossa “casa comum” pede mudanças
Passada a folia, para os católicos é tempo de Quaresma. São 40 dias de reflexão, penitência e esforço de conversão. Na Igreja do Brasil, é o também o tempo da Campanha da Fraternidade (CF). Instituída pela Igreja Católica em 1963, sob o impulso renovador do Concílio Vaticano II, ela propõe uma atitude de conversão sobre um determinado aspecto não apenas pessoal, mas, sobretudo, social, despertando os cristãos, a sociedade para algum desafio específico e busca de soluções.
Este ano a campanha está em sintonia com a Encíclica Laudato Si (Louvado sejas), do Papa Francisco, que nos desafia a olhar para o impacto que causamos em nossa “casa comum” e na vida do outro. Com o tema “Casa comum, nossa responsabilidade”, e o lema: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca”, a CF propõe instaurar uma reflexão crítica dos modelos de desenvolvimento que têm orientado as políticas públicas, especialmente no que dizem respeito ao direito de todos ao saneamento básico.
A maioria de nós não faz a mínima ideia da situação calamitosa em que vivem muitos seres humanos. No mundo, um bilhão de pessoas fazem suas necessidades a céu aberto; mais de 4.000 crianças morrem por ano por falta de acesso à água potável e ao saneamento básico; na América Latina, as pessoas têm mais acessos aos celulares que aos banheiros: 120 milhões de latino-americanos não têm acesso a banheiros.
Os números brasileiros são igualmente alarmantes, para fazer pensar: os últimos dados do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento Básico – base 2013) mostram que pouco mais de 80% da população têm acesso à água tratada. Mais de 100 milhões de pessoas ainda não possuem coleta de esgotos e apenas 39% destes esgotos são tratados. Despejamos diariamente o equivalente a mais de 5 mil piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento na natureza. Cada brasileiro gera em média 1 quilo de resíduos sólidos diariamente. Só a cidade de São Paulo gera entre 12 a 14 mil toneladas diárias. As 13 maiores cidades do país são responsáveis por 31,9% de todos os resíduos sólidos no ambiente urbano brasileiro.
Garantir a sustentabilidade ambiental entrou na pauta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), uma agenda global de compromissos mínimos pela promoção da dignidade humana que 191 estados-membros da ONU firmaram em 8 de setembro de 2000. Líderes do mundo (o Brasil entre eles) assumiram, entre outros, o desafio de, em quinze anos, reduzir a população sem acesso a água potável e saneamento básico. Os números do final de 2014 davam conta de que a meta de acesso ao esgoto não foi alcançada.
O prazo terminou em 2015, e em agosto último os objetivos foram referendados na agenda Pós-2015 e novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram apresentados. Desta vez 193 países acordaram 17 metas a serem cumpridas até 2030, entre elas a de garantir disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento para todos. A tarefa é hercúlea.
Especialistas confirmam a associação entre saneamento básico precário, pobreza e índices de internação por diarreias. Com 13 milhões de habitantes sem acesso a banheiro no domicílio (OMS/UNICEF, 2010), o Brasil figura na nona colocação do ranking mundial “da vergonha”. Por ano 217 mil trabalhadores precisam se afastar de suas atividades devido a problemas gastrointestinais ligados à falta de saneamento; cada afastamento significa 17 horas de trabalho a menos. As diarreias respondem por mais da metade das doenças relacionadas a saneamento básico inadequado.
Eu poderia gastar horas apresentando dados, índices comprovando o quão longe estamos de metas capazes de conferir direitos básicos de seres humanos a grande parte dos brasileiros. São muitas as famílias em situações degradantes, vivendo em locais onde o esgoto corre a céu aberto, e isso se reverte também em poluição dos rios e prejudica a fauna e a flora, enfim, a nossa “casa comum”.
Durante a quaresma somos chamados a olhar com mais cuidado para tudo isso, a nos inquietarmos diante de tanta miséria e a vermos o que de nossa parte é possível fazer. Além do consumo consciente dos recursos naturais e de produtos para nossa subsistência, de forma a produzir o mínimo possível de lixo, temos também a responsabilidade de pressionar os poderes públicos para que destinem verbas suficientes para a criação de condições mais dignas de vida aos menos favorecidos. As últimas notícias de Brasília deixam claro que dinheiro não lhes falta.
Tudo o que fizermos – ou deixarmos de fazer – terá reflexo na vida do outro e na nossa casa comum. Atitude de conversão implica mudança de atitude – primeiro de nossa parte, depois, por parte dos que têm a tarefa de governar. Precisamos nos empenhar, à luz da fé, por políticas públicas e atitudes responsáveis que garantam a integridade de todos e o futuro de nossa “casa comum”. Nossa meta é “ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca” (cf. Am 5,24).
Reitor Prof. Dr. Pe Edelcio Ottaviani
São Paulo, 12/02/2016
Profª. Drª. Karen Ambra
Reitora do Centro Universitário Assunção